Há três anos atrás a Direção Regional de Cultural do Norte apresentou uma candidatura a fundos comunitários para obras estruturais no Museu de Lamego, agora, em fase de conclusão, com vista a uma melhoria das acessibilidades físicas e comunicacionais do museu, a que demos o nome Museu de Lamego. Um Museu para todos.
Os museus são lugares de memória, pelo que toda a sua atividade gravita em torno de questões relacionadas com a fixação da identidade – a conservação material e intelectual das coleções, do edifício e da sua história. Todavia, esta deve ser encarada de modo expandido e aberto ao exterior, consciente do papel atuante dos museus no desenvolvimento da sociedade e suas flutuações. Os museus são, desse modo, também espaços de construção, comprometidos com um futuro que se pretende seja melhor, por meio de uma melhoria constante da experiência educativa dos diferentes públicos, nas quais estes possam desempenhar um papel cada vez mais participativo.
Motivados pela possibilidade de explorar novas vias de narrar a história, as coleções e o edifício, o museu tem fomentado uma prática de projetos educativos que partem da relação património-escola-comunidade, de envolvimento e cocriação, no favorecimento de uma formação ativa, participativa e inclusiva, e de ligação do indivíduo ao mundo.
Sessão no Museu de Lamego, com os alunos do 10.º ano da Escola Secundária de Latino Coelho envolvidos no projeto. ©Museu de Lamego. Paula Pinto
Outras vozes, outras histórias, poder-se-ia dizer de alguns projetos que o Museu de Lamego tem levado a efeito com esse propósito, articulados com práticas artísticas contemporâneas, que sejam simultaneamente veiculadores de mensagens de atual pertinência e transversalidade. Insere-se neste contexto o projeto SALA COLONIAL, concebido pela artista e investigadora Catarina Simão (n. Lisboa, 1972), com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian, ao abrigo do programa de apoios à Criação Artística em Artes Visuais, Cinema, Dança e Teatro, e em parceria com o Agrupamento de Escolas de Latino Coelho – Lamego e Município de Lamego.
A designação do projeto faz referência a uma antiga sala de exaltação propagandística promovida pelo Estado Novo, no contexto da política de promoção do Império, junto de institutos e liceus públicos, como foi o caso do Liceu de Lamego – atual Escola Secundária de Latino Coelho. Com efeito, logo no segundo ano de atividade do Liceu no novo edifício, em 1938 (e até meados da década de 1950), que a Sala Colonial passou a fazer parte do plano programático da Escola. A sala acolhia então uma série de elementos alusivos aos territórios ditos “ultramarinos”, tais como mapas, livros, animais embalsamados, peles, cornos e crânios de animais, gravuras e um Padrão Português, na altura, designado dos “Descobrimentos”. A sala tinha ainda uma coleção heterogénea de artefactos africanos – escudos, flechas, bengalas, estatuetas, instrumentos musicais, acessórios e máscaras em madeira. Em 1980, grande parte destes objetos “Indígenas-Africanos” (como eram mencionados) foram transferidos do Liceu para o Museu de Lamego, enquanto que outros permaneceram na Escola, onde ainda hoje se encontram.
Imagem da antiga Sala Colonial. Autor desconhecido, 1938. In. Sala Colonial. O Filme, de Catarina Simão (2022). ©Museu de Lamego. Paula Pinto
Com o intuito de valorizar a participação de alunos, de professores, e também de antigos alunos e professores, assim como a comunidade lamecense em geral, no sentido de se trabalharem novas interpretações para a coleção, este projeto propôs, para o efeito, retornar ao espaço físico da Sala Colonial e às entidades que a fizeram nascer, por meio da experimentação de uma prática de memorialização que desvinculasse os objetos africanos da ficção promovida pelo Estado Novo, contribuindo desse modo para um reposicionamento da coleção na sua historicidade própria.
Desenvolvido ao longo de cerca de um mês, com alunos do 10.º ano, no âmbito da disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, o projeto realizou-se em colaboração com toda a comunidade letiva, por forma a promover a ativação de uma educação crítica e de autoquestionamento em relação ao passado colonial e às suas representações, que ainda perduram em muitas instituições públicas e de ensino (na linguagem, comportamentos e gestos), em benefício de uma formação mais humanista, capaz de promover condutas cívicas igualitárias e de maior justiça social.
De modo sucinto, nas sessões realizadas houve lugar a:
1. Uma visita ao museu, para reconhecimento da coleção de arte de proveniência africana. De entre os c.300 artefactos, os alunos selecionaram três, que seriam alvo de posterior investigação: um bastão de metal, um pequeno tambor e uma estatueta em madeira, representando um colono. Com o auxílio de um exame de raio-X – pensado como estratégia motivadora para o processo de pesquisa e investigação, tomando como exemplo séries televisivas em relação às quais os alunos estavam familiarizados – foi possível aferir inúmeras informações sobre os mesmos, objeto de posterior reflexão e discussão. A título de exemplo, refira-se o caso da pequena escultura, que segundo alguns autores, se relaciona com a representação de “figuras de poder”, que pressupõem uma relação contratual entre duas entidades. O exame de raio-X sublinhou a desproporção entre o tamanho da cabeça em relação ao tronco e pernas. Mas: Não é a bicicleta que é pequena para o colono, mas o próprio corpo que se contrai. Parece que o escultor teve a intenção de fazer o colono a rir-se de si mesmo. Uma imagem do colono caricatural, que o ridiculariza. Qual o significado deste objeto? E qual o seu papel no contexto de uma exposição de exaltação do Império? (Catarina Simão. In Sala Colonial. O Filme, 2022).
A visita ao museu propiciou ainda um relato, na primeira pessoa, resultante da experiência de Joaquim Melo, convidado para a sessão. Joaquim Melo, para além de ter sido antigo aluno e professor da Escola Latino Coelho, cumpriu serviço militar em Angola, que serviria de mote para a partilha de memórias sobre políticas coloniais, que tiveram grande impacto naquele país, em Portugal e, de modo particular, em Lamego, cidade reconhecida pela sua tradição militar;
Visita ao Museu de Lamego por José Roseira, sobrinho-bisneto de um dos diversos doadores de objetos de arte africana destinados à Sala Colonial. ©Museu de Lamego. Alexandra Falcão
2. Uma visita exploratória no interior da Escola, à procura de vestígios que ainda pudessem permanecer ativos da Sala Colonial. A primeira paragem foi às duas salas de aula de Informática. Há alguns anos, as duas salas formavam uma só, muito mais ampla, onde, em 1938, foi instalada a Sala Colonial. Seguiu-se uma visita à sala de História, onde puderam observar, ao fundo da mesma, velhos mapas e o um padrão dos “Descobrimentos”, o elemento que domina o único documento visual conhecido da antiga sala. A visita prosseguiu pelo Museu de Ciências Naturais, onde, guiados pela professora responsável pelo espaço, os alunos reconheceram centenas de espécies animais e vegetais com origem em África, que fizeram parte do recheio da mesma, incorporados no museu escolar, quando esta foi desativada em 1980.
A antecipar as sessões houve lugar a uma visita prévia ao arquivo da Escola, onde foi possível a identificação de um numeroso conjunto de livros e fotografias que, inequivocamente, pertenceram ao recheio da antiga Sala Colonial. O conjunto foi reunido na biblioteca, onde, entre leituras críticas de alguns textos publicados em 1939, terminou a sessão.
Visita ao arquivo da Escola I. Publicação com o carimbo Sala Colonial. ©Catarina Simão
Visita ao arquivo da Escola II. Fotografias que faziam parte do recheio da antiga Sala Colonial. ©Catarina Simão
3. Em paralelo ao trabalho desenvolvido na Escola, foi levado a efeito um levantamento dos doadores identificados nas fichas de inventário dos artefactos, tendo sido possível localizar familiares. Curiosamente, nenhuma das pessoas contactadas conhecia os espólios doados pelos antecessores à Sala Colonial. Foram convidadas a vê-los de perto, tocá-los e senti-los. Pelos objetos perpassam histórias que se ouviam contar na família, ou sobre as quais caia um véu de silêncio, pelos recortes de violência, trauma e vergonha; noutros casos, foi na casa de herdeiros de doadores, que se avivaram memórias e remexeram álbuns de família, e através deles, possível identificar o médico e antigo reitor do Liceu de Lamego, Cassiano Neves. Cassiano Neves foi também antigo médico do presidente Óscar Carmona e, nessa qualidade, acompanhou em 1938 a viagem presidencial a Angola e São Tomé e Príncipe. Terá sido nesse contexto, que chegaram a Lamego muitos objetos com que se montaria a Sala Colonial, criada nesse mesmo ano. Entre as várias histórias de família que no âmbito do projeto foi possível desvelar, interessou-nos uma em particular, pelos laivos de violência, dominação, preconceito e racismo envolvidos. Uma história que generosamente foi partilhada pelo sobrinho bisneto de um dos doadores, durante uma sessão emocionalmente intensa.
Volvidos três meses desde a última sessão, a investigadora Catarina Simão regressa à Escola para uma apresentação do filme-documentário que realizou sobre toda a experiência [trailer: https://www.youtube.com/watch?v=yO5MhDyHqaQ&t=5s].
Sala Colonial. O Filme, de Catarina Simão. Sessão de apresentação na Escola III. ©Museu de Lamego. Paula Pinto.
Algumas notas finais:
- Concluído o projeto foram muitas as janelas que ficaram entreabertas, obrigando à sua continuidade. Entre outros, a curto-médio prazo, prevemos concluir a disponibilização online do catálogo da coleção de arte africana, ao abrigo de protocolo com a Sociedade de Geografia de Lisboa e com a coparticipação da comunidade;
- Sala Colonial, pelo seu pioneirismo, teve/tem um impacto que não podíamos prever, que se traduz no interesse que tem suscitado nos meios académico, educativo e museológico. Reconhecido como um caso de estudo, já é longa a lista de convites para sua apresentação no contexto de encontros nacionais e internacionais – Escola de Verão da Gulbenkian (outubro de 2022) – e diversas reuniões informais, nomeadamente, no âmbito do mestrado em Educação Artística da FBAUP.
- Numa altura em que o Museu de Lamego repensa a sua exposição de longa duração, Sala Colonial obriga a uma reflexão sobre modos de comunicação no museu, por meio do que expomos e como o expomos. A coleção de arte africana impõe-se doravante como essencial nessa reflexão;
- Em termos profissionais e pessoais, é inegável o lugar especial que este projeto ocupa no meu percurso, pelo desafio constante de repensar abordagens e estratégias, como reação aos constrangimentos e dificuldades que se iam colocando; um projeto que nos obrigou a sair da caixa-museu, para conhecer, de um modo como até então nunca havia acontecido, a Escola, um dos mais fidedignos barómetros da sociedade, auxiliando-nos/ auxiliando o Museu na sua missão de intervir e de promover a mudança, só possível quando verdadeiramente lhe sentimos o pulsar.
Toda a informação sobre o projeto em: https://museudelamego.gov.pt/aprender/projeto-sala-colonial/
Alexandra Falcão
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A autora utiliza o novo acordo ortográfico.
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