Em Portugal, a actividade que tem como principal objectivo a preservação dos bens culturais – nomeadamente obras de arte – para benefício das gerações actuais e futuras é designada de conservação e restauro e quem a pratica de conservador-restaurador. Suspeito que a primeira designação não segue as regras da gramática pois formalmente refere duas actividades distintas, a conservação, por um lado, e o restauro, por outro, mas é empregue como se fosse uma palavra composta que descreve uma só actividade, que engloba aquelas duas, não obstante a falta do hífen que é suposto usar-se nestas circunstâncias, independentemente do acordo ortográfico seguido. Além disso, parece haver alguma incoerência gráfica, ou ortográfica, entre a denominação da actividade e a denominação de quem a realiza. A este respeito a nomenclatura em inglês usada por algumas instituições internacionais é bem mais lógica: conservation-restoration e conservator-restorer. Em português já foi proposta a designação conservação-restauro por Francisca Figueira e Alexandre Pais, na tradução que fizeram da resolução sobre terminologia, de 2008, do Comité da Conservação do Conselho Internacional dos Museus (ICOM-CC), mas, pelos vistos, sem sucesso – pelo menos até agora.
Gramática à parte, os dois termos dão conta dos diferentes objectivos que a intervenção numa obra pode apresentar: deter os processos de degradação activos ou reforçar a sua estrutura de forma a evitar a sua perda, no caso da conservação, ou melhorar o seu usufruto, compreensão e uso, no caso do restauro. A sua justaposição no nome da actividade, com ou sem hífen, pretende dar conta do variável grau com que estes objectivos podem coexistir numa mesma intervenção e da dificuldade, ou mesmo impossibilidade, de se traçar uma linha entre as acções que contribuem para cada um desses objectivos.
Esta dualidade é historicamente recente, já que antes do século XIX as intervenções tinham como único objectivo a reparação dos danos, isto é, o restauro ou, na terminologia mais antiga – que se mantém no Brasil –, a restauração. No caso das obras de arte, essas intervenções eram muitas vezes realizadas por artistas, alguns de renome, guiados por critérios apenas artísticos, que não hesitavam em as renovar ou refazer. O objectivo da conservação, que minimiza o impacto das intervenções, surgiu como consequência dos desenvolvimentos da consciência patrimonial ao longo desse século. O termo já era usado ao lado de restauro – ou, mais precisamente, restauração – na década de 1850, a propósito dos monumentos nacionais, em particular do Mosteiro da Batalha, ainda que essa utilização, pelo menos com significado próximo, pareça ser mais tardia no caso de obras plásticas, não obstante em 1875 já estar definido como conservador “a pessoa com habilitações necessárias para saber conservar pinturas, medalhas, livros, manuscritos e outros objectos preciosos” (Francisco de Assis Rodrigues).
O conceito de conservação associado a uma intervenção desenvolveu-se baseado no respeito pela obra, isto é, a obra original. No entanto, apesar das propostas minimalistas de John Ruskin ao terminar a primeira metade do século, esse respeito, mostrando a inseparável ligação entre conservação e restauro, geralmente significava restaurar, ainda que não de forma livre e criativa como até então, antes com o objectivo que Rodrigues associava a essa palavra: “repor no antigo estado, reparar; restituir qualquer obra d’arte ao seu estado primitivo”.
Entretanto, o conceito de conservação alargou-se e, actualmente, o respeito pela obra inclui o respeito pela história da obra, compreendendo as marcas causadas pelo tempo ou pelos homens. Consequentemente, o regressar ao estado original – aliás, uma utopia – deixou de ser o objectivo das intervenções e a valorização das obras não raro baseia-se nessas mesmas marcas. O estado de que a intervenção de conservação e restauro procura aproximar-se, o estado ideal de Barbara Appelbaum, contudo, é sempre um estado histórico, ou seja, um estado que existiu num determinado momento, escolhido através da cuidadosa análise de um conjunto de valores (artísticos, estéticos, históricos, de uso, de investigação, pedagógicos, de antiguidade, de novidade, sentimentais, monetários, de relação, de comemoração e de raridade) cuja relevância é avaliada no momento histórico em que é preparada a intervenção. Se assim não for, a intervenção cria um falso histórico – já repudiado por Ruskin.
No entanto, a imagem da conservação e restauro na sociedade não tem acompanhado este movimento e o que geralmente é esperado de uma intervenção de conservação e restauro, muito especialmente de uma obra de arte, continua a ser um suposto regresso ao esplendor original, como se o tempo não existisse, os materiais não envelhecessem e, não menos importante, o olhar não fosse outro. É claro que esses milagres – palavra que se encontra em notícias que pretendem enaltecer intervenções que chegam às páginas dos jornais – só podem ser obra de talentosos artistas, papel em que não se revê um conservador-restaurador, com uma formação superior, que nada tem de artística, de, pelo menos, 5 anos. Portanto, o reconhecimento público da conservação e restauro, como notavelmente ficou visível numa serôdia carta aberta publicada no ano passado, assenta num equívoco – que o uso isolado da palavra restauro alimenta.
A palavra restauro, porém, deve ter algum bom retorno quando, sem mais, é utilizada a propósito de uma intervenção – ainda que os conservadores-restauradores privilegiem a conservação relativamente ao restauro. Só assim se pode compreender que instituições com responsabilidades na área, que inclusivamente dão trabalho a conservadores-restauradores, continuem a usar a palavra restauro para descrever as suas actividades. Além das incontáveis referências ao restauro disto e ao restauro daquilo, já houve títulos, registados na capa de livros, como a “Arte do Restauro” e o “O Restauro Volta às Belas-Artes”. Agora, talvez para concorrer com as casas dos segredos, temos a “A Casa do Restauro”.
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