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PRR, cultura e património: rumo ao passado?


O mais importante na questão do afluxo de fundos europeus para o chamado Plano de Recuperação e Resiliência não é tanto a sua expressão financeira (muito apreciável, mas inferior às poupanças familiares dos últimos dois anos), mas a visão de futuro que comporta:


O PRR português é um programa de aplicação nacional, com um período de execução até 2026, e vai implementar um conjunto de reformas e de investimentos que permitirá ao país retomar o crescimento económico sustentado, reforçando o objetivo de convergência com a Europa ao longo da próxima década.” (PRR, p.1)

“(…) retomar a trajetória de crescimento sustentado que vinha a ser seguida e que foi abruptamente afetada pela crise gerada por esta inesperada pandemia.” (p.8)


Trata-se, assim, de uma visão de futuro, partilhada com a Comissão Europeia, que visa “retomar” um rumo, e não propriamente de uma estratégia para a construção de um futuro eventualmente diferente. Percebe-se que essa visão de futuro ancorado no passado se estrutura em torno de um mito: o de que esse passado recente seguia uma rota essencialmente positiva, interrompida apenas por um episódio transitório – a pandemia. Percebe-se, também, que é uma visão de futuro cujo horizonte é 2030 e para a qual o passado é limitado à curta distância, sem um enquadramento temporal mais longo. É, também, uma visão de futuro que pensa o território nacional olhando essencialmente para dentro e para as proximidades imediatas (mencionando Espanha em função da proximidade geográfica, económica e cultural, embora sem daí deduzir que pelo menos um dos investimentos conjuntos deveria ser na esfera cultural).


A compressão temporal (limitada a pouco mais de uma década) e espacial (sem considerar as implicações culturais, logísticas e socioeconómicas da reorganização geoestratégica mundial) no raciocínio do PRR ecoam a progressiva redução da dimensão de prospetiva nas decisões do setor público, em Portugal e não só, o que impede a construção de uma verdadeira visão de futuro (que estava presente no documento inicial de António Costa e Silva, mas desaparece do documento final). Quando a pandemia levou a generalidade dos cidadãos a repensarem as suas estratégias de vida, o que se exprime através de novos comportamentos que rompem com o passado imediato pré-confinamentos (do turismo à política), o PRR parece repetir fórmulas sem conteúdo (como as tradicionais “reformas estruturais”) sem entender o crescente divórcio entre pessoas, instituições e serviços, que já está a reorganizar, culturalmente, a economia mundial.


É significativo que, quando identifica os eixos estratégicos de investimento em cultura, o PRR mencione apenas dois: renovação e requalificação e melhoria de competências (ou seja, conservação de infraestruturas e formação), explicitamente excluindo a modernização e a expansão (que são relevantes noutros investimentos do plano). É igualmente interessante constatar que, quando identifica a relação de cada área de investimento com as quatro agendas temáticas do Portugal 2030, o PRR relaciona a cultura com a agenda de “inovação e qualificação como motores de desenvolvimento”(o que se reporta ao eixo da qualificação, acima mencionado) e com a agenda “Um País competitivo externamente e coeso internamente” (o que terá relação com a renovação de infraestruturas), mas exclui aquela que deveria ser a área temática eminentemente cultural: “As pessoas primeiro”.


A inserção da cultura no PRR como uma espécie de “adereço” é reforçada quando o PRR identifica a matriz relacional de complementaridades entre os diversos investimentos: a relação da cultura com outros domínios não é considerada sequer como estando no nível mais “baixo” (complementaridade indireta), incluindo com a saúde, a habitação, as respostas sociais ou a qualificação, para já não mencionar as temáticas da mobilidade sustentável ou da escola digital. Talvez por isso, quando enumera os resultados esperados dos investimentos e reformas no campo da “Resiliência” (onde insere a cultura), o PRR não tenha uma linha: na verdade, o plano não espera que aconteça nada de relevante com esses investimentos e, neste campo, terá provavelmente razão.


A forma como o PRR olha para a cultura não parte, assim, da compreensão da sua dimensão sistémica, sem a qual não é possível operar quaisquer transformações sociais, restringindo-a, de facto, a um bunker de curiosidades e divertimentos, explicitamente separados de tudo o resto na vida dos cidadãos. É, nesse campo, um documento especialmente perigoso, porque passa ao lado do que já é, e será cada vez mais, o quadro dos debates nas sociedades do século XXI: que tipo de sociedade, que entendimento de cidadania e que perfil de direitos humanos se pretende promover? As respostas do PRR saem diretamente dos documentos de Estocolmo em 1972 e do relatório da Comissão Brundtland em 1987, que foram avanços importantes no seu tempo, mas permeados de graves limitações. É um plano que poderia ser subscrito pelo último governo do Estado Novo, mas dificilmente dará resposta às necessidades da sociedade do século XXI.


O capítulo específico do PRR sobre a cultura define como objetivo “valorizar as artes, o património e a cultura enquanto elementos de afirmação da identidade, da coesão social e territorial e do aumento da competitividade económica das regiões e do país através do desenvolvimento de atividades de âmbito cultural e social de elevado valor económico.” (p.103). Sendo interessante que a palavra identidade seja escrita apenas no singular, é mais significativo que se estabeleça a ligação com a competitividade económica e se ignore, totalmente, a educação. É um olhar sobre a cultura que não é muito diferente do que dominou grande parte do século XX, afinal: o foco identitário (mas agora sem se mencionar de que identidade), a cultura como construção de símbolos e mitos de coesão territorial (mas desta vez sem se dizer como) e a valorização reduzida a uma noção desenvolvimentista da economia (mas sem que tal seja explicitamente confessado no PRR).


Apesar de não se poder considerar o texto do PRR no capítulo da cultura como sendo fruto de um entendimento inovador, existem numa noção que é útil e de que o País carece: a ideia de estruturar redes, que identifica áreas importantes (recursos tecnológicos, digitalização, internacionalização). Porém, ela esquece um elemento essencial: num mundo cada vez mais digitalizado, o campo da cultura, e em particular do património cultural, diferencia-se sobretudo por exigir uma relação experiencial, analógica, que é cognitivamente insubstituível e, por isso, consolida a relação material entre os bens culturais e os territórios em que se inserem. A visão das redes parece limitada a projetos parcelares, certamente úteis, mas sem um fio condutor.


A valorização do património cultural como um dos dois eixos de investimento poderia ser um elemento positivo, depois de anos de “perda” deste setor. Porém, o resultado é dececionante: quando em termos globais se fala em co-construção, em partilha de saberes, em democratização do entendimento das expressões culturais, o PRR limita os investimentos ao Estado (requalificação dos museus, monumentos, palácios e teatros do Estado) e aos saberes tradicionais. Não se consegue perceber a diferença em relação ao programa que Portugal teve com António Ferro há quase um século, exceto num ponto: o programa da década de 1930 era elitista e nacionalista, mas tinha uma visão; o PRR não tem visão, ainda que recupere conceitos e instrumentos de há um século atrás.


Porém, apesar de tudo, estão considerados 243 M€ para a cultura, sendo que não se devem descurar os 1.324 M€ para qualificações e competências, os 559 M€ para a “Escola digital” ou os “n” milhões atribuídos aos mais diversos setores, que poderiam beneficiar de uma articulação com a cultura e o património se, na prática, assim forem usados, apesar de o PRR o não considerar. O PRR não tem visão de futuro, quando a tenta ter parece-se demasiado com o desenvolvimentismo de uma parte do Estado Novo e, sobretudo, não entende a relevância da cultura para além de uma dimensão anedótica. Mas o documento, globalmente apesar de pior do que o seu “rascunho” é algo com que, penso, devemos tentar trabalhar. Este texto não é, por isso, um convite à desistência ou um exercício de critica per se. Mas perceber o que subjaz, do ponto de vista de visão de futuro (ou falta dela) ao PRR é importante, penso, para o podermos utilizar.

 

O autor utiliza o Acordo Ortográfico.


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