No momento em que escrevo este texto, cumprimos a primeira semana de confinamento, naquele que será o segundo em menos de um ano. Neste contexto, e à semelhança do que aconteceu em Março de 2020, foram já anunciadas várias medidas pelo governo para apoiar a economia e o emprego, algumas delas orientadas exclusivamente para o sector cultural.
Ao ler a reacção por parte do mais representativo sindicato do sector Cultural (CENA), há um ponto que queria destacar porque remete para uma realidade que afecta não só os profissionais das artes do palco, mas também os profissionais do património cultural. A propósito da medida que prevê um apoio de 438 euros para todos os trabalhadores que desenvolvam a sua actividade no sector cultural, alerta o sindicato para a existência de muitos profissionais que estando ligados ao mesmo ficam fora dos apoios, uma vez que se encontram registados em Códigos de Actividade Económica (CAE) ou Códigos do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS) associados a actividades distintas.
Este aspecto é uma das conclusões que se encontra no inquérito realizado pela Associação Profissional de Conservadores-restauradores de Portugal (ARP) a propósito do impacto da pandemia na actividade durante o primeiro confinamento, e que surge de uma forma clara nos dados recolhidos. Partindo do exemplo dos conservadores-restauradores, apenas 56% dos profissionais que responderam ao inquérito (na categoria de prestadores de serviço) possuíam um CAE principal enquadrado na Secção R (correspondente ao sector cultural), e 50% um CAE secundário. No âmbito dos códigos CIRS a situação é ainda mais grave, com apenas 13,6% dos profissionais a surgirem registados em códigos de imposto ligados a actividades profissionais artísticas (que em abono da verdade, nada têm a ver com o que estes fazem!).
Os números apontam para um conjunto de trabalhadores invisíveis dentro do sector cultural, sobre os quais não existem quaisquer dados estatísticos e que por isso saem fora do radar das políticas laborais e dos sucessivos apoios sociais que têm sido pensados para a responder à Pandemia. Apontam também para um aspecto estrutural, e que se prende com o desfasamento entre as várias actividades desenvolvidas no sector cultural, e as previstas no Código de Actividades Económicas e na lista de actividades do artigo 151, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares.
Olhando para o Código de Actividades Económicas (que é a principal ferramenta de recolha de dados estatísticos sobre as várias profissões e actividades económicas), mais concretamente para o grupo 91 da Secção R, correspondente ao sector do património cultural, encontramos 6 grupos que definem diferentes áreas dentro do mesmo: Actividades das bibliotecas; Actividades dos arquivos; Actividades dos museus; Actividades dos sítios e monumentos históricos; Atividades dos jardins zoológicos, botânicos e aquários; Actividade dos parques e reservas naturais.
Resultam desta organização dois problemas: o primeiro advém da mesma ser bastante redutora na forma como entende o património cultural, excluindo várias actividades que fazem hoje parte deste universo – a título de exemplo, as actividades de mediação, a comunicação patrimonial, a produção de conteúdos, a conservação e restauro…; o segundo decorre do carácter generalista que apresenta. Ao centrar-se única e exclusivamente nos contextos sem particularizar as actividades geradas no âmbito dos mesmos (directas e indirectas), faz com que muitos profissionais e empresas não se encontrem representados, acabando por se registarem em actividades associadas a outros sectores.
Relativamente à listagem de actividades do artigo 151 do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singular, o cenário é ainda mais confrangedor. Existe uma única categoria para o sector cultural (categoria 2 - Artistas plásticos e assimilados, actores e músicos), que exclui todos os profissionais que desenvolvam a sua actividade profissional fora do sector artístico. São contempladas dez possibilidades correspondentes às seguintes profissões: Artistas de teatro, bailado, cinema, rádio e televisão; Artistas de circo; Cantores; Escultores; Músicos; Pintores; Outros artistas.
Para além da dispersão, resulta do actual ordenamento a impossibilidade de uma correcta compreensão do sector, da sua composição, actividade, e recolha de dados estatísticos fidedignos.
É por isso que as propostas avançadas pelo CENA e pela ARP referente à necessidade de mapeamento de todos os profissionais que intervêm no sector ganham particular importância, após o anúncio feito pela Ministra da Cultura e pelo Ministro da Economia no passado dia 14 de janeiro. É fundamental que se faça um estudo profundo sobre profissões e profissionais, com critérios alargados e inclusivos, que vão para além da visão ultrapassada reflectida nos CAE, e no registo nacional de profissionais do setor das atividades artísticas, culturais e de espetáculo, levado a cabo pela Inspecção-geral das actividades culturais.
Torna-se igualmente importante o envolvimento do Estado Português, e neste aspecto concreto do Ministério da Cultura, no processo de discussão e revisão dos Códigos de Actividade liderada pelo EUROSTAT, iniciado em Outubro de 2020, onde se encontra em discussão uma proposta formulada pela Confederação Europeia de Associações de Conservação e Restauro para o código 91.
O primeiro passo para resolver os problemas dos profissionais passa por reconhecer a sua existência, e compreender a sua realidade socio-económica. Os Códigos de Actividade Económica e os Códigos do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, não resolvendo todos os problemas e não sendo os únicos indicadores, são ferramentas incontornáveis nesse processo.
Enquanto essa alteração não é feita, deve o Ministério da Cultura minimizar o impacto desta situação, criando critérios alternativos para além dos CAE e CIRS como forma de acesso aos apoios anunciados. Só desta forma se conseguirá garantir que os profissionais que trabalham directa e indirectamente no sector cultural são ajudados, sem excepções, e sem que se agravem ainda mais as desigualdades, num sector que é particularmente atingido pela precaridade e que tem sido um dos mais penalizados pela pandemia.
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