Duas situações de destruição patrimonial ganharam os destaques da imprensa e das redes virtuais nas últimas duas semanas: a destruição de uma anta numa herdade perto de Évora, para a plantação de um amendoal, e a possibilidade de destruição dos vestígios da mesquita medieval encontrados na Sé de Lisboa. Até onde se sabe, o arquiteto responsável pela obra havia planejado construir um volume no lugar onde foram encontradas as estruturas, e queria retirá-las para cumprir o programa arquitetónico previsto. Em ambos os casos, a exposição de denúncias e a contestação de profissionais, de professores, de intelectuais e da sociedade civil parece ter surtido algum efeito, na medida em que os temas se tornaram motivo de debate em jornais e nas redes sociais. Igualmente em ambos casos se destaca o movimento de grupos de proteção patrimonial, formais e informais. No caso da anta de Évora, foi registada uma queixa-crime da Direção Regional de Cultura, a partir de denúncias de uma associação de defesa do património, no final do mês passado: o Grupo Pró-Évora, uma associação fundada em 1919. No que tange à mesquita de Lisboa, o Sindicato dos Trabalhadores de Arqueologia (STARQ) e o Fórum Cidadania Lisboa foram as entidades que tomaram ações mais efetivas, com vista a obter uma explicação para a tentativa de destruição patrimonial.
Se ambas as situações são bastante constrangedoras para os profissionais e cidadãos que se preocupam com a salvaguarda do património, é de elogiar a importância das ações destas entidades; contudo, enquanto o Grupo Pró-Évora é uma associação, o Fórum Cidadania Lisboa, surgido pelas mãos de Paulo Ferrero em 2004, tem a sua origem como blogue (a página ainda existe[1] e continua a ser alimentada) mas hoje encontra no Facebook um dos seus principais meios de comunicação. É em homenagem a esse sentido cívico, que na redes sociais achou campo fértil de desenvolvimento e propagação, que dedico esta minha coluna.
As redes sociais têm sido alvo, com razão, de imensas críticas por formarem bolhas políticas ou utilizarem técnicas de psicologia aditivas que deixam viciados os seus utilizadores, mas no que tange ao património também têm servido para unir cidadãos em torno de causas comuns. Enquanto na política, na disputa entre os partidos políticos e seus membros, as consequências parecem cada vez mais nefastas à democracia, no que tange ao património o ativismo digital parece chamar a atenção para questões importantes, e eventualmente obter vitórias relevantes. Neste sentido, o caso de Lisboa parece ser exemplar. O Fórum Cidadania Lisboa não era o único blogue do género quando surgiu, tendo como companheiros o Lisboa SOS, o Carmo e a Trindade e a Sétima Colina; tão pouco está hoje sozinho no Facebook, tendo como companheiros, por exemplo, a Associação de Defesa do Património de Lisboa ADPLx, o Património Arqueológico e Geológico das Penínsulas de Lisboa e Setúbal, o grupo Arqueólogos Portugueses, a Associação dos Arqueólogos Portugueses, a Lisboa Romana, quase todos estes com cerca de quatro mil membros. Todos estes grupos ou páginas permitem o acompanhamento sem serem pedidas credenciais profissionais, abrindo-se a comentários de público leigo e amador.
Embora haja um número maior de grupos espalhados por todo o país, Lisboa e o seu centro parecem ser terreno privilegiado. A razão parece ser a densidade populacional que compõe uma grande cidade, mas também o contexto de rápida mudança com a turistificação e a gentrificação pelas quais Lisboa tem passado, causando uma mudança brusca na cidade em muito pouco tempo, o que potencia forte apelo à nostalgia. Nem sempre as denúncias são relativas à destruição de prédios, objetos ou conjuntos urbanos; às vezes, a questão são as fachadas, ou mesmo as placas… É possível traçar um paralelo entre este movimento e a tomada de consciência de uma cidade a ser preservada durante as transformações da Paris haussmaneana, quando surgem as associações de proteção da cidade antiga, como Les Amis des Monuments Parisiens, La Commission du Vieux Paris ou as sociedades de savantes de bairros, muitas delas se caracterizando pela desaprovação da cidade moderna frente ao desaparecimento da cidade antiga.
Assim, a preocupação com o património é também uma forma de se apropriar dele e da própria cidade. Mas há-de se analisar igualmente o caráter dialético desta relação. Ao mesmo tempo em que buscam proteger o património, também o criam, também potenciam uma outra consciencialização. As leis patrimoniais desde muito cedo incidem sobre edifícios ou objetos individuais, e a proteção de conjuntos é muito mas tardia, como é possível perceber pelas próprias candidaturas à UNESCO, que só hoje incidem sobre conjuntos patrimoniais; a noção de paisagem tornou essa discussão mais palpável. O património é também construído pelo olhar de quem considera aquilo um bem a ser preservado.
No mundo, no campo do património, o Facebook tem a primazia sobre as demais redes sociais, ainda que o Instagram seja a rede preferida de muitos museus e de outros equipamentos culturais, nomeadamente para publicidade e divulgação de exposições e atividades várias. Mas o Instagram funciona ainda para uma parcela menor da população. O Facebook continua a ser a rede com maior número de perfis, com possibilidade ampla de partilha de fotos, textos e respostas ao comentários, para além de congregar e permitir a interação de entidades de caráter distinto: entre os grupos que discutem o património, nem todas são associações, há institutos governamentais, há até empresas. Assim sendo, é importante destacar que o Facebook pode realizar a utopia do patrimoine citoyen. Ou seja, tornar realidade o desejo da participação comunitária na preservação de bens históricos, arqueológicos e paisagísticos. Efetivamente, quais os aportes que a internet pode trazer?
Em primeiro lugar, uma ampliação do debate democrático: o Facebook pode servir como um instrumento colaborativo onde qualquer um pode levantar um tema, pode publicar, e onde enganos podem ser resolvidos mais rapidamente. Oferece rapidez para tratar de temas que necessitem de soluções urgentes. Oferece grande facilidade de acesso: capacidade de reunir pessoas que estão distantes fisicamente, que têm problemas de mobilidade ou horários díspares. Oferece facilidade de publicação: não é necessário que um tema seja proposto a partir de modelos de escrita convencionais. Por fim, permite a difusão cultural do que está a ser feito e produzido por técnicos e especialistas para um sem fim de stakeholders.
Enquanto muitos se perguntam se o ativismo digital efetivamente tem repercussões no mundo real, algumas entidades provam que os meios de comunicação virtual têm, sim, o poder de congregar pessoas com opiniões próximas e ter um certo peso representativo enquanto sociedade civil. Mas isto desde que as atitudes consigam ir além da simples discussão no Facebook, as denúncias ou críticas. O real instrumento de pressão continuam a ser os instrumentos tradicionais: as cartas, as queixas na justiça, a presença no parlamento, as manifestações endereçadas ao corpo político… A isso soma-se a importância do seu reconhecimento pelos meios de comunicação tradicionais como interlocutores representativos da sociedade civil.
Porém, há igualmente problemas no horizonte: a disseminação de notícias falsas é provavelmente a principal delas. O Observador já publicou um texto a desmentir um post feito no grupo público Fórum Cidadania LX, que sugeria que a Bertrand estaria em conversações com a Câmara Municipal de Lisboa para acabar com a feira do livro da Rua da Anchieta, e na mesma senda o Público desmentiu que a Confeitaria Nacional fosse fechar. Outro problema é a efemeridade própria do mundo digital, que pode ser um obstáculo a que essas páginas se solidifiquem como campos de proteção patrimonial. Por exemplo, nem todos os blogues sobreviveram durante a passagem para o Facebook: o Lisboa SOS teve as últimas publicações em 2011. Também perigosas são algumas publicações inflamadas, feitas por amantes do património que pecam por desconhecimento de técnicas de preservação ou da disciplina arquitetónica, reduzindo as questões essenciais à superficialidade de comentários sobre o “bom” ou o “mau gosto”, o que serve bem de indicativo da crucial necessidade de o meio profissional investir em projetos de educação patrimonial. É importante a defesa de um património que vá além de gostos pessoais ou de tentativas de manutenção de tudo “tal como era no passado”. Primeiro, porque tal é impossível: o tempo muda, assim como os usos; os vestígios materiais se degradam. Segundo, porque as próprias técnicas de conservação e restauro estão em constante mudança e discussão. Não é incomum encontrar nestas páginas reclamações que confundem discussões patrimoniais com dificuldades de mobilidade citadina, difíceis de serem sanadas em centros urbanos; ou reclamações sobre mudanças do comércio tradicional que deixa de existir por não ter mais clientes. E não é possível esquecer as questões relativas à própria rede social, cujos algoritmos podem ser bastante tendenciosos e dificultar as discussões plurais.
Feitas as contas, regista-se aqui a importância da organização da sociedade civil nas redes sociais em torno das questões patrimoniais e da realização de ações efetivas para a salvaguarda patrimonial. Trata-se de um uso proveitoso das redes sociais digitais em Portugal que, curiosamente, não encontra muitos paralelos pelo mundo; as páginas são comuns em quase todos os países, mas quase sempre com menos membros, menos membros ativos e poucas ações práticas em torno dos assuntos discutidos. O caráter público da discussão é outro ponto-chave da importância destas páginas; o facto de as discussões acontecerem em páginas abertas e não em sociedades ou associações fechadas permite que profissionais e leigos possam fazer uma prospecção dos assuntos evidenciados, dos desejos e pontos que têm de ser melhor explicados politicamente.
O Facebook é a rede mais usada no momento, mas, tal como os vestígios, pode desaparecer; desde que o espírito democrático se mantenha na busca da salvaguarda patrimonial, poderá ser substituído por outros meios de comunicação. Oxalá se mantenha sempre vivo este espírito cívico.
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