Susana Gomes da Silva
Há 10 meses começava assim um outro texto, ainda no meio do desconcerto do primeiro confinamento:
“Um programa educativo é um espaço de encontros e de relações. Uma programação educativa não se traduz apenas em visitas, oficinas, conversas, concertos, histórias… mas sim em lugares de partilha e mediação, espaços entre as obras e os visitantes, entre os mediadores e os participantes, entre as muitas vozes que habitam as galerias e coleções de um museu e as muitas vozes que diariamente os visitam e frequentam.
Fechar um museu é suspender tudo isto e ferir de forma muito dura este espaço do encontro, retirando-lhe a materialidade dos corpos, a proximidade social, o contacto direto com o objeto e a sua presença física e isso dificilmente tem paralelo virtual. Este é aliás um dos dilemas que todos enfrentamos no presente momento - como recuperar um espaço relacional que tem como premissas essenciais a proximidade, a relação com o espaço e as obras, o contacto, em direto, com a presença física das coisas e das pessoas?”
Agora, no início de um novo compasso de espera, com o museu novamente de portas fechadas, sem público nas galerias, com as exposições encerradas, as atividades canceladas, reagendadas ou reinventadas e as equipas em casa, agarro-me mais uma vez a uma das convicções que há 10 meses fiz questão de registar como forma de lidar com a incerteza e a voragem do tempo: “não deixar que a rapidez dos acontecimentos e a necessidade de respostas céleres nos tolha a capacidade de continuar a fazer o que sempre fizemos [e em que convictamente cremos] – construir e reforçar relações, acreditando que o exercício da mediação e da criação são essenciais para a existência e relevância de qualquer instituição museológica.”1 E, acrescentaria, para a sua diversidade e abertura.
Este tempo de paragem para pensar agora, como o foi antes, é em si um momento de tomada de consciência, de regresso ao essencial e um ato de resistência2. E a que resistimos então?
Há muitos anos, o serviço educativo criou uma área de programação chamada Museu Aberto, que se destinava a projetos de inclusão e acessibilidade, sobretudo na área do trabalho com públicos com necessidades específicas. A designação Museu Aberto partia (e acentuava) do pressuposto de que mesmo de portas abertas, um museu não é sempre, necessariamente, um espaço de verdadeira inclusão e acessibilidade, capaz de assumir o seu pleno papel enquanto lugar de representação e diversidade ao serviço da sociedade. O nome Museu Aberto entretanto caiu (os projetos e as iniciativas que promovem a acessibilidade e inclusão de forma abrangente e diversificada são transversais a toda a ação educativa e não fazia sentido mantê-lo só para uma área de programação e um tipo de público) mas a profunda consciência de que os museus são entidades múltiplas, complexas, por vezes internamente ambivalentes e contraditórias na sua relação com os públicos e com a sua intrínseca e inquestionável diversidade, mantém-se. E a necessidade de continuar a criar espaços abertos dentro de museus, que estão muitas mais vezes mais fechados do que pensam, também.
Os paradigmas de museu têm vindo a mudar e há muito que a dimensão da relação com os públicos entrou nas definições da sua missão. Mas o novo paradigma vai mais além do simples desenho de projetos de aproximação aos públicos ou da criação de serviços educativos e exige que os museus assumam outros papéis que os tornem “socialmente responsável(is), acessível(is), inclusivo(s) e participativo(s)”3 e que, neste sentido, se assumam como uma força cultural dinâmica, flexível e adaptativa, um território em permanente reconstrução na relação dialética com a diversidade social, étnica, económica e cultural da sociedade contemporânea. Simultaneamente uma resposta e uma proposta no tecido social e temporal a que abrem as suas portas.
Cada vez mais os museus são chamados a repensar os seus papéis numa sociedade em mudança e civicamente mais exigente, a responder aos desafios do seu tempo incorporando novas vozes e novos atores no seu espaço de poder e representação4, cumprindo a sua parte no contributo para a construção de uma visão de futuro mais sustentável e justa, de comunidades mais fortes, mais resilientes, mais democráticas, assumindo-se como espaços de criação, de reflexão, de construção e reconstrução, de reparação e de cuidado.5
Os museus são assim chamados a deixar entrar nas suas políticas de aquisição, conservação, investigação, programação e educação as grandes questões que nos assolam enquanto coletivo e a contribuírem ativamente para o desenho da sociedade e do futuro que desejamos. E a pandemia não tem feito senão acentuar esta call to action6 que impede que nos coloquemos à margem dos acontecimentos e continuemos a encararmo-nos como redutos neutros, intemporais, universais e apolíticos, alheios às convulsões e exigências do nosso tempo.
Também por isso é preciso repensar as políticas de públicos pois elas são reveladoras de estruturas de relacionamento que determinam tudo o resto: o que expomos, o que fazemos com o património que salvaguardamos, a quem nos dirigimos, com quem dialogamos, que vozes validamos, quem deixamos verdadeiramente entrar e para quê?
Ao “porque fazemos o que fazemos?”, sucede necessariamente um “como fazemos o que fazemos?”. A noção de desenvolver (mais do que formar) públicos implica: criar públicos onde não os havia (novos públicos, não públicos, outros públicos?); alargar os que já existiam tornando-os mais representativos da pluralidade social; envolver e criar comunidade, promovendo o sentido de pertença e de reconhecimento para estabelecer relações relevantes e duradouras. Implica por isso compromisso e sentido democrático.
Assumir o papel cívico das instituições culturais e colocar o desenvolvimento de públicos (as comunidades, as pessoas, as relações) no centro da sua ação é um desafio que implica mudanças importantes nas missões e identidades que nos caracterizam (e diferenciam) enquanto espaços culturais, nas equipas que constituímos (ou que procuramos constituir), nos programas que desenvolvemos e na forma como os pensamos e operacionalizamos, nos públicos que convocamos e a quem nos dirigimos, no papel que os convidamos a desempenhar, no(s) poder(es) e responsabilidades que assumimos, delegamos e partilhamos.
É neste espaço dinâmico, por vezes ruidoso e cacofónico, muitas vezes ambivalente e não isento de tensões, desconforto, risco e inquietude, que concebo, humildemente, o meu lugar enquanto programadora e mediadora. E é também este lugar (espécie de caixa de ressonância dos sons do mundo) que me parece constituir um museu verdadeiramente aberto.
Como responsável de programação educativa ocupo, na maioria das vezes, o espaço mais visível do contacto direto com os públicos. É o lugar onde se constrói a experiência e a memória que, tanto reforça o que já trazíamos como referentes, como o que conseguimos mudar e transformar neste encontro.
No desenho de uma programação educativa materializamos, mediamos e conjugamos vontades, propostas e leituras provenientes de diferentes elementos fundamentais na vida de um museu (diretores, curadores, investigadores, artistas, mediadores, públicos) transformando-os em projetos concretos, visitas, conversas, concertos, performances, programas, desafios e propostas para interlocutores/destinatários muito diversos. O espaço em que a equipa educativa se move é feito de pontes (não é isso mediar?) e assume tanto uma dimensão mais pública e regular (a programação regular para públicos diferenciados, habitualmente mais visível na agenda) como uma dimensão de bastidores, mais longa e experimental, feita de projetos de colaboração e participação com comunidades específicas. Ambas cumprem uma visão de museu como entidade viva, atenta, interveniente e diversa, em escalas e tempos diferentes.
Acredito que o espaço da educação é fecundo na criação de diferentes registos e diferentes vozes, um forte aliado no desenho de espaços de entrada e participação efetiva de diferentes indivíduos e coletivos, um terreno importante para o exercício da democracia cultural, ajudando a cumprir a visão e missão7 da instituição em que se inscreve. A riqueza e diversidade de uma coleção não se mede apenas pela qualidade dos seus objetos e obras de arte mas pela capacidade que temos de os interpretar e ler de diferentes formas. Acredito que isto implica sempre um modelo dialógico de trabalho (assente em perguntas mais que em respostas, fomentador do diálogo como metodologia e do debate como espaço de partilha e construção conjunta de saberes8) e aponta para uma visão participativa dos públicos.
Promover a diversidade, a abertura, é possibilitar e potenciar estes espaços de participação. Projetos como o Gulbenkian 15-25 Imagina (uma experiência de co-programação com e para jovens dos 18 aos 24 anos), Aqui eu conto9 (projeto de apoio à aprendizagem do português para migrantes, refugiados e falantes de português como língua não nativa) ou Entre Vizinhos (projeto de proximidade com a população sénior da freguesia das Avenidas Novas), experimentam e testam modelos participativos de trabalho, partilhando com os participantes o lugar e o poder de quem decide, de quem programa, de quem constrói as leituras e narrativas. Projetos híbridos de estreita colaboração entre educação e curadoria como o Poder da Palavra (um projeto de curadoria participativa10), a exposição Tempo de Suspensão de Manon de Boer ou os Encontros Internacionais Where we Stand, são outros modelos de colaboração que preconizam espaços e atores renovados na leitura das coleções e na capacidade de fazer do museu um espelho da diversidade do mundo em que se insere e um propositor de mudança. Chão Comum, um projeto de hortas comunitárias desenvolvido a partir de uma exposição de Tamás Kaszás com os funcionários da instituição, materializa uma outra forma conceber este espaço da plurivocalidade, ao colocar os públicos internos no centro da equação, porque todas as vozes importam e a cooperação e a sustentabilidade são um chão comum essencial no mundo que queremos.
Em comum, todos eles têm um modelo participativo e colaborativo de trabalho, e a vontade de ouvir e fazer acontecer diferentes vozes no espaço do museu11. É deste tecido que é feita a diversidade. Projetos como os que descrevi sobreviveram ao fecho das portas em 2020 (mantendo um outro “museu aberto”) porque eram projetos participativos, nos quais os intervenientes desenvolveram uma relação horizontal enquanto coletivo, partilhando responsabilidades nas escolhas, leituras, decisões e propostas. Funcionando como grupos de parceiros criativos com ownership sobre os resultados e as propostas realizadas. Isto permitiu-nos/lhes reinventar os formatos e os meios para a continuidade deste encontro, relembrando-nos continuamente da profunda relevância de continuarmos (sermos) abertos.
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