Ana Carvalho, Museóloga
Porque é hoje a definição de museu tema recorrente e a suscitar o interesse de tantos, dentro e fora da profissão? Porque precisamos de uma nova definição de museu? Serve para quê, afinal? É este um tema novo com que nos defrontamos? O que tem provocado este burburinho que tanto nos conforta ou desconforta, ao mesmo tempo nos estimula a pensar nas premissas, nos alicerces do que fazemos e porque o fazemos?
Um pouco de contexto
Recentemente, o interesse em debater o que é o museu tem reemergido com entusiasmo com a realização de vários eventos e com a circulação de artigos de opinião. Estas iniciativas estão especialmente ligadas à malograda iniciativa do Conselho Internacional de Museus (ICOM), que a 7 de Setembro de 2019, no âmbito da sua 25.ª Conferência-Geral, em Quioto, no Japão, pretendia votar uma nova de definição de museu. Isso de facto não veio a acontecer na sequência de várias contestações quanto à proposta apresentada. O que acabou por acontecer foi que uma esmagadora maioria (70,41%) de membros decidiu adiar por um ano a votação de uma nova definição. Apesar de essa possibilidade não ter sido antes (e formalmente) equacionada pelo Comité Executivo do ICOM, também me pareceu a decisão mais acertada para reorganizar ideias e repensar uma definição de museu que possa melhor servir e inspirar uma comunidade e um panorama museológico tão diverso.
Faz sentido perguntar: como se chegou até aqui?
A definição de museu é um tópico central da actividade do ICOM e revisitado de quando em quando para ajustes, desde a sua primeira formulação nos Estatutos, em 1946. A última revisão é de 2007:
O museu é uma instituição permanente sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento, aberta ao público, que adquire, conserva, investiga, comunica e expõe o património material e imaterial da humanidade e do seu meio envolvente com fins de educação, estudo e deleite.[1]
A ideia de voltar a pensar a definição de museu do ICOM ressurge na anterior Conferência-Geral em Milão (2016). Em sequência disso foi criado, em 2017, um Comité Permanente (Committee for Museum Definition, Prospects and Potentials) com o objectivo de analisar o impacto das tendências societais nos museus e avaliar a relevância da actual definição.
No âmbito do trabalho deste Comité Permanente (2017-2019), em Julho deste ano, o Comité fez chegar ao Comité Executivo do ICOM cinco propostas de definição de museu. Por sua vez, o Comité Executivo escolheu uma para votação, que divulgou a 25 de Julho:
Os Museus são espaços democratizantes, inclusivos e polifónicos, orientados para o diálogo crítico sobre os passados e os futuros. Reconhecendo e lidando com os conflitos e desafios do presente, detêm, em nome da sociedade, a custódia de artefactos e espécimes, por ela preservam memórias diversas para as gerações futuras, garantindo a igualdade de direitos e de acesso ao património a todas as pessoas.
Os museus não têm fins lucrativos. São participativos e transparentes; trabalham em parceria activa com e para comunidades diversas na recolha, conservação, investigação, interpretação, exposição e aprofundamento dos vários entendimentos do mundo, com o objectivo de contribuir para a dignidade humana e para a justiça social, a igualdade global e o bem-estar planetário.[2]
Lições a partir de Quioto
Também eu estive em Quioto, juntamente com uma vintena de colegas portugueses. Não fui em delegação organizada. Submeti uma proposta de comunicação a um dos comités internacionais, que foi aceite, para partilhar resultados de investigação. Contei com o apoio imprescindível do centro de investigação onde estou integrada, sem o qual não teria sido viável a minha participação. Sendo a minha primeira vez numa Conferência-Geral do ICOM foram várias as aprendizagens, nomeadamente a possibilidade de ver mais de perto como funciona o ICOM, a esta escala (4500 pessoas), nas suas fragilidades e potencialidades.
O cerne da conferência de Quioto foi decisivamente a nova proposta de definição de museu, cujo frenesim das conversas de corredor era quase palpável. Sentia-se a agitação no ar, nos gestos, nos discursos, que foi crescendo até à “decisiva” votação, após várias horas de tensão e desorientação numa assembleia-geral extraordinária que parecia “ingerível”.
Centro-me agora no “argumentário” (ainda que não de forma exaustiva) que esteve na base da contestação em Quioto quanto à dita proposta, no qual também me revejo, em grande medida.
A primeira ordem de ideias tem a ver com a forma e conteúdo. É uma proposta demasiado extensa para que as várias partes que a compõem possam ser ditas e repetidas a outros, o que se poderia implicar uma dificuldade quanto ao seu alcance e apropiação; por sua vez, inclui muitas palavras-chave ou buzzwords, cujos sentidos não são consensualizados, correndo-se o risco de aprofundar mal entendidos quanto ao seu significado e aplicação.
É de notar que muitas das posturas contra a proposta se afirmavam em acordo com a maioria dos valores patentes (ex. participação, inclusão, transparência). No entanto, também se chamava a atenção que a proposta tal como formulada estaria mais próxima de uma declaração de aspirações ou uma visão, do que de uma definição propriamente dita. Ainda assim, também se percepcionou o desconforto quanto a uma posição demasiado política dos museus na sociedade, sobretudo nas conversas mais informais.
Por outro lado, uma proposta com esta configuração corria o risco de excluir muitos museus, ainda que se reconhecesse a existência de museus que já trabalham no sentido dos valores e aspirações que a proposta defende.
Quanto às funções museológicas, a proposta ressalva a sua continuidade (recolha, conservação, investigação, interpretação, exposição) se a compararmos à definição vigente, assim como a garantia da não hierarquização de funções. No entanto, esta proposta deixa cair a educação como finalidade dos museus, pela sua omissão. Não sendo a educação uma finalidade plenamente assumida, isso poderia levar a que no futuro se descurasse esta dimensão da acção dos museus.
Outro argumento refere-se à omissão do museu como “instituição permanente”, um aspecto que se encontra patente na corrente definição (e na nossa Lei-Quadro de Museus de 2004) e que pode ser relevante para garantir o acento na permanência dos museus.
Várias pessoas sublinharam ainda o potencial impacto desta proposta, nomeadamente a dificuldade de a transpor para as legislações nacionais, sobretudo para os países que não têm legislação dedicada aos museus. É de notar que, sendo a definição de museu do ICOM referencial para a comunidade de profissionais e museus de todo o mundo, é fonte de inspiração para muitos países. Regra geral cada país adopta um conceito próprio de museu, adaptando-o à sua realidade específica, consensualizado profissionalmente e/ou validado juridicamente, tal como aconteceu em Portugal com a definição de museu na Lei-Quadro de Museus (2004).
Em síntese, não creio que a nova proposta de conceito de museu, atendendo à sua expressiva contestação, tenha representado uma divisão entre conservadores e vanguardistas, ou uma rutura geracional. Também não me parece que tenha representado uma rejeição massiva à mudança, tendo sido reconhecida por uma grande maioria a necessidade de rever a definição.
Creio que foi sobretudo o resultado de um processo que falhou por afinal não ter conseguido gerar uma definição suficientemente assertiva e inclusiva que clarifique e nos inspire quanto às finalidades dos museus na sociedade do séc. XXI.
E sobre este ponto sublinho também a importância de que uma futura definição vá para além da identificação de funções museológicas para considerar também o acento nas finalidades – porque fazemos o que fazemos. Além disso, revejo-me na ideia de que as actividades que os museus desenvolvem, alicerçadas nas suas funções (recolha, conservação, investigação, interpretação, exposição...), devem ser mais do que um fim em si mesmas, mas um meio, uma ferramenta para gerar impactos. Reflexão esta que não é ignorada na comunidade de profissionais e museus.
Sobre as finalidades dos museus, ainda me revejo, em parte, na definição de museu de 1998 da Associação de Museus britânica quando sublinha o museu como um “lugar de aprendizagem e de inspiração”, ainda que outras finalidades pudessem ser introduzidas para reforçar os compromissos dos museus na sociedade do séc. XXI. E talvez neste ponto resida o desconforto, fazermos mais com as ferramentas que temos (recolha, conservação, investigação, interpretação, exposição...), mas com muitas interrogações quanto à forma de o fazer. Sendo certo que muitas destas funções não estão a ser plenamente cumpridas num universo de museus muito desigual, o que também é problemático.
No rescaldo de Quioto: que impactos?
Apesar de não se ter chegado a uma nova definição de museu em Quioto, não se ignora o seu impacto. A cobertura mediática na imprensa permitiu desencadear um processo de debate, que extrapolou em grande medida o ICOM. O que entendemos por museu, o que deve ser o museu é algo evolutivo. Ainda que a mudança seja lenta, ela ocorre, e ocorre sobretudo nas nossas mentes enquanto profissionais comprometidos. Em certa medida, o ICOM também terá contribuído para isso. Assim, ao contrário de algumas intervenções em Quioto que expressaram o receio de que revelar posturas divisivas no seio do ICOM poderia levar a uma má imagem, penso que é salutar que uma organização desta envergadura comporte diferenças de opinião e de visão quanto ao que deve ser um museu. É na partilha de diferentes perspectivas e nesse diálogo que vamos crescendo e evoluindo.
Uma definição de museu, como a que propõe o ICOM, não é vinculativa do ponto de vista da letra da lei, não temos forçosamente de a seguir. Para isso temos a nível nacional a legislação de museus, quando existe, como acontece em Portugal (se é aplicada já é outra questão). Mas penso que o ICOM tem um agenciamento relevante, na potencialidade de gerar discussão, inspirar, recentrar o debate...; pode ainda ser útil como referência internacional[3], e subsequentemente, na possibilidade de pressão e negociação junto dos decisores políticos em contextos nacionais, por exemplo na defesa de legislação específica nos países ou da sua aplicação ou revisão de aspectos ainda não contemplados ou que carecem de ser desenvolvidos. Creio que pode ser também um instrumento de pressão na defesa do desenvolvimento dos museus e de uma política museológica.
Pós-Quioto?
A decisão sobre a votação de uma nova proposta ficou suspensa por um ano. Não há ainda orientações do Conselho Executivo do ICOM sobre como se desenrolará este processo. Como será atendida a reivindicação dos comités nacionais e internacionais sobre um maior envolvimento no processo de definição do conceito de museu? E que vias de participação mais directas serão possíveis aos membros ordinários nesta fase?[4] Esta será também uma questão a aprofundar, já que o processo foi em parte contestado por não incluir de forma mais assertiva o contributo dos comités nacionais e internacionais. O ICOFOM (dedicado à museologia), por exemplo, foi um dos poucos comités internacionais a argumentar a necessidade de mais tempo para discutir com os seus membros a proposta de definição de museu. Penso que de Quioto também podem ser inferidas lições quanto à necessidade de repensar processos e formas de participação no seio desta organização.
Sugestões de leitura:
ICOM new definition: articles and comments: https://padlet.com/am_marras/dqpp3zws7opm
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