Que a situação é precária todos já sabíamos, mas a pandemia escancarou as consequências nefastas das características laborais tidas como próprias do meio cultural. Mais do que revelar, colocou muitos profissionais numa situação de não retorno; mas mesmo em dias felizes, os salários e as condições de trabalho em Portugal e noutros países do mundo são notavelmente baixos nesta área. Segundo o relatório do Observatório Português das Atividades Culturais, um em cada cinco trabalhadores independentes da cultura ganha o salário mínimo, ou menos.
Assim, um Estatuto do Trabalhador da Cultura proposto pelo Ministério da Cultura é, a princípio, uma boa e imprescindível iniciativa, esperando-se que o texto apresentado nesta quinta-feira seja sujeito a consulta pública e a revisão. A sua função é, todavia, limitada: serve para proteger minimamente os trabalhadores num meio com características muito específicas, como o trabalho por projetos isolados e a sazonalidade. Igualmente positiva é a declaração de investimento em quarenta e seis museus, monumentos e palácios, alguns dos quais, como o Museu Nacional de Arqueologia, precisam desesperadamente de obras de melhoria para melhor acondicionar e apresentar o seu extraordinário acervo.
Um assunto que não foi trazido à tona e que deveria também merecer contínua atenção é a valorização dos profissionais da cultura, cujos rendimentos são em geral menores face a outras profissões para o mesmo nível de formação. Tendo em conta que, mesmo em carreiras longas, os contratos de trabalho estáveis são raros, o último Relatório do Observatório da Cultura revela como os trabalhos no setor cultural têm distribuição irregular no tempo, e como há períodos frequentes sem qualquer retribuição, existindo a necessidade de se realizarem atividades remuneradas fora do setor artístico como forma de assegurar rendimentos mínimos ou de complementar os baixos rendimentos auferidos com o trabalho cultural. Em muitos casos, são esses os rendimentos que permitem a continuidade do trabalho cultural: não se trata apenas, então, da necessidade de assegurar proteção para os períodos sem rendimento, mas de criar meios para incentivar estabilidade e contrato, quando possível.
Outro aspeto importante é a excessiva concentração de trabalhadores da cultura na capital — 56% vivem na área da metropolitana da grande Lisboa, 20% na região Norte e os restantes estão espalhados pelo país, com especial concentração no eixo atlântico Lisboa-Porto. Uma concentração que também encontra equivalência em França: o relatório “Revenus d'activité et niveaux de vie des professionnels de la culture [CC-2015-1]”, de autoria de Marie Gouyon, de 2015, mostra como os profissionais da cultura residem em boa parte em Paris e como, por conta dos custos elevados associados à vida nessa cidade, tendem a casar menos e ter menos filhos.
Além da precariedade e da sazonalidade, uma outra questão deve ser debatida com urgência: os valores remuneratórios. Em muitos casos profissionais, na ausência de uma tabela remuneratória há uma enorme disparidade na remuneração do trabalho. E, em geral, os salários são mais baixos do que a média para o mesmo nível de qualificações. É claro que este é um cenário comum a muitos países, mas é enorme a importância destes profissionais para, por exemplo, o turismo mais qualificado — aquele que pressupõe estadias mais longas e cujos viajantes demonstram interesse pela história e cultura do país que visitam —, a tal ponto que uma valorização das profissões da cultura e respetivas carreiras poderia neste contexto ter um grande retorno.
Um exemplo bastante paradigmático é o dos diretores dos museus nacionais em Portugal, cujo salário ronda os 3000 euros brutos, menos do que um Professor Auxiliar, muito menos do que um Professor Catedrático ou um Juiz em final de carreira. Ora os diretores dos nossos mais importantes museus, que se pretendem exemplares e internacionais, como o Museu Nacional de Arte Antiga ou o Museu Nacional dos Coches, têm um papel estratégico e cimeiro na promoção do próprio sector cultural em geral, mas igualmente do sector turístico e da própria imagem de marca de Portugal no exterior. É muito difícil saber valores exatos para esse tipo de quadro em diferentes países mas, a título de comparação, o salário do Diretor no Museu da Língua Portuguesa (São Paulo), em 2021, é de R$24.676,39 (cerca de €3700 à taxa de câmbio atual); em França, um "Conservateur général", com funções diretivas, receberá aproximadamente €3700 no primeiro escalão, chegando até aos €5500 em fim de carreira. Naturalmente, uma comparação assim a seco peca por não refletir sobre outras compensações acessórias, bem como sobre os diferentes contextos e custos de vida. Mas este é um dado que, politicamente, e quando comparado com outros quadros superiores da função pública, está ligado não apenas ao custo de vida mas à importância que se dá à promoção da cultura. Num contexto periférico como o português, pode até dizer-se que é ainda mais importante atrair quadros bem qualificados, com experiência internacional, sob pena de as estruturas nacionais não conseguirem ganhar competitividade à escala global. Não deixa por isso de ser irónico e possivelmente sintomático da realidade salarial portuguesa que, apesar de "internacionais", os recentes concursos para cargos dirigentes de museus da Direção-geral do Património Cultural não tenham recebido candidaturas de cidadãos estrangeiros, à parte alguns oriundos da América Latina.[1]
Esta é uma semana para comemorarmos que pelo menos se crie algum tipo de mecanismo de reconhecimento e proteção ao setor cultural. Embora as críticas já abundem, é frutuoso aproveitar o momento para aprofundar a discussão e salientar a importância que o setor tem e terá quando a pandemia acabar. Nicholas Christakis prevê para 2024 o início dos loucos anos 20 do século XXI, resta saber se estaremos preparados para esse boom cultural e turístico.
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