Os incêndios são uma calamidade que, indubitavelmente, nos afecta anualmente. À perda constante e praticamente irrecuperável do património natural, e ao desaparecimento de alguns recantos que ainda repercutiam réstias de uma paisagem tradicional centenária quase extinta, como aconteceu recentemente na Serra da Estrela e na Serra de Monchique, juntamos a perda dos bens pessoais de uma vida que se consomem em instantes, vidas humanas que desaparecem, fundos públicos sem fim que se esfumam nas mais diversas despesas associadas ao combate e prevenção a incêndios e aos apoios às vítimas.
Neste contexto de destruição praticamente incontrolável, e que aparentemente as alterações climáticas vão agudizar, de causas e motivações diversas, de constantes avaliações contabilísticas e pormenorizadas peritagens enchendo as primeiras páginas da comunicação social, raramente (ou nunca) vemos qualquer referência à destruição do património cultural, arqueológico e rural-arquitectónico. E não o vemos porque a comunicação social o ignora, mas também porque as entidades que o deveriam fazer o não fazem. Autarquias Locais incluído. Arqueólogos e Biólogos, sobretudo.
Os fogos que por si só são fonte de destruição implacável de paisagens, da biodiversidade e de recursos económicos inesgotáveis, se no prato da balança estiver o turismo, são motivo cada vez maior para o actual abandono das zonas de interior e para uma cada vez maior massificação de culturas de uma floresta e uma agricultura intensiva que esvaziam de pessoas e memórias este país. O vazio de gentes ajuda a normalizar uma paisagem sem história. Engole caminhos, impele ao intensivo em grande escala, esvazia a memória com a toxicidade do esquecimento.
E se o vazio de gentes leva ao fim de importantes fragmentos da história imaterial que faz a nossa estória e harmoniza o funcionamento das pequenas comunidades, outras especificidades do nosso património desaparecem ou ficam profundamente fragilizadas com todo este fenómeno incêndios/desertificação que nos acomete anualmente.
Obviamente que um desses “patrimónios” é o Arqueológico e o Etnográfico, apesar de na sua maioria estar “subterrâneo”. No entanto, seja na abertura de novos acessos para mobilidade de veículos no combate e controlo de incêndios, seja na abertura de aceiros ou na limpeza de sítios, seja pela acção das altas temperaturas dos fogos florestais, amiúde vai desaparecendo um património cultural rico, diverso e desconhecido, importantíssimo para a construção do nosso imenso puzzle cultural, fonte de riqueza e recurso inédito para a investigação e o fazer ciência, potencial infra-estrutura para a actividade turística, uma indústria cada vez mais importante para o equilíbrio das finanças públicas.
Mas se a frieza deste olhar preocupado com o património que se vai perdendo parece não trazer nenhuma solução e termos apenas mais um factor de débito neste flagelo indomável que são os cíclicos incêndios anuais, a realidade pode ser outra. Os sítios arqueológicos podem deixar de ser mais uma equação a adicionar ao problema e passarem a fazer parte da solução.
A actualização de cartas arqueológicas municipais, a identificação dos sítios arqueológicos e a sua georreferenciação, a limpeza anual da sua envolvente, a par da criação ou manutenção de acessos para rapidamente se aceder até eles, poderiam ser a fórmula para a salvaguarda dos sítios nas zonas de maior desertificação e, ao mesmo tempo, a criação de espaços de contrafogo naturais que ajudariam a impedir mais facilmente o avanço das chamas. Reavivar antigos caminhos, reconstrução de açudes e recuperação de moinhos, definição de perímetros de protecção claros para o património megalítico, para os castros e vilas romanas, são algumas das acções que deveriam ser assumidas neste contexto, seja através da criação de dinâmicas na sociedade civil, seja através da potenciação de projectos universitários pluridisciplinares, seja através de projectos das autarquias locais, seja através de legislação que a isso obrigue as empresas de produção e gestão florestal.
Em primeira instância e de modo imediato com o decretar dessa obrigatoriedade de inventariação de sítios, as empresas de exploração florestal ficavam assim, de forma natural e efectiva, obrigadas a incluir nos seus planos de gestão florestal um plano de salvaguarda dos sítios identificados no interior das parcelas florestadas. Aos municípios caberia outra parte dessa responsabilidade de controlo e gestão de informação, assim como aos proprietários particulares esse conhecimento permitiria olhar para o seu património de outra forma. Com o apoio das tutelas, sejam elas da área cultural ou da ambiental, as soluções seriam encontradas com fórmulas específicas para cada um dos sítios a salvaguardar em função da sua localização.
Pouco a pouco, estes espaços ganhavam um papel interessante na regeneração e defesa da paisagem, mas, sobretudo, assumiam um papel fundamental na mobilização de esforços e vontades no combate a um dos maiores flagelos e inimigos da nossa economia e da nossa memória! A novidade neste pequeno discurso de reflexão é que a par de tudo o atrás exposto, o trazer mais conhecimento às comunidades gera mais auto-estima e maximiza vontades.
E o interior precisa tanto de novas engrenagens e novos estímulos…
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