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Algumas propostas para que a preservação do património cultural seja uma realidade em Portugal



Todas as crises têm as suas particularidades, tornando-as únicas nas suas causas e em muitos dos seus efeitos. Se isto era verdade no passado, a crise que vivemos actualmente desencadeada pela COVID-19 tornou-o ainda mais evidente, pela forma, sem precedentes, como vimos as nossas vidas paralisadas, pelo seu carácter inesperado e pelas implicações que assumiu no modelo de sociedades globalizadas em que vivemos. Mas se existe um carácter próprio em cada crise, também existem padrões que se repetem em muitas das consequências sociais e económicas que delas resultam.


Talvez por isso, e a propósito do impacto da COVID-19 no sector do Património Cultural, e em particular na sua preservação, dei por mim a pensar num artigo que escrevi em co-autoria em 2015, que reflectia, entre outros, sobre o impacto da crise económica em Portugal entre 2011-2014 (durante a permanência da troika no nosso país) na actividade da conservação e restauro. Sendo o contexto outro, sendo uma realidade que afectava essencialmente os países do sul da europa, e sem a mesma severidade que se perspectiva para o momento actual, ainda assim, muito dificilmente deixaremos de assistir à repetição de dinâmicas que se registaram então, e que tiveram um impacto transformador (para pior…) no sector do património cultural.


Olhando retrospectivamente para esse artigo – que teve como base um inquérito realizado a um conjunto de empresas que operavam exclusivamente no âmbito da conservação e restauro –, dele se extraíram as seguintes consequências da crise económica e social de então:


. O factor preço tornava-se o grande dominador dos concursos realizados no âmbito da conservação e restauro de património cultural, tornando-se hegemónico relativamente aos demais critérios de licitação. No período considerado, o «preço mais baixo» fora o critério de adjudicação mais representativo, verificando-se em 57% dos casos - se a este juntássemos outros critérios de selecção referenciados, onde o preço assumia uma preponderância superior à valia técnica, o número de concursos subia para 87%.


. O número de procedimentos orientados exclusivamente para a conservação e restauro sofria uma queda drástica, dando lugar às grandes empreitadas de construção – onde a conservação e restauro passava a figurar como sub-especialidade. Esta alteração resultava dos incentivos conferidos então à reabilitação arquitectónica, à predominância de projectos co-financiados pela União Europeia (intervenções de grande vulto), a uma redução do investimento dos privados, e a uma redução da autonomia financeira de muitos organismos e entidades do sector público.


. A entrada de novos agentes na actividade da conservação e restauro, sem qualquer relação com o sector – oriundos da área da construção e que reorientaram então a sua actividade para a recuperação de património cultural e artístico.


. Valorização diminuta das qualificações, competências, recursos humanos e currículo das empresas e técnicos, reflectida no peso reduzido que estes factores assumiam nos critérios de adjudicação dos procedimentos.


Apesar de se terem passado 5 anos desde o fim da última crise, e da que vivemos ser bastante diferente nas suas causas e nas condições sociais e económicas que o país apresenta hoje, muito dificilmente deixaremos de assistir à repetição do sucedido entre 2011-2014, se nada for feito.


É de esperar que os concursos voltem a ser dominados por uma lógica de licitação baseada no critério preço, uma vez que este é o comportamento recorrente sempre que os recursos disponíveis diminuem – se este aspecto já era dramático no passado, piorou devido à crise de 2011-2014, e apenas nos últimos anos começava a ser atenuado devido à melhoria das condições económicas do país.


É de esperar também que as empresas e os técnicos do sector da conservação e restauro do património cultural percam espaço, e que venham a enfrentar sérias dificuldades.


Com a gigantesca diminuição de receitas nos museus e monumentos devido à quebra no turismo e às restrições ainda decorrentes da pandemia, com o Estado e as instituições públicas a orientarem os seus orçamentos para responder às questões sociais e para outros sectores considerados mais prioritários, com o decréscimo do investimento dos privados, e com o grosso do investimento a ser feito por via de projectos co-financiados pela União Europeia (que privilegiam uma lógica de grandes empreitadas), o número de procedimentos diminuirá (com consequências na relação oferta-procura) e uma grande parte estará acessível apenas a grandes empresas.


É por isso que se torna fundamental considerar medidas para o sector, que ponham em prática muitas das convenções e documentos subscritos pelo Estado Português no contexto europeu, e que nunca chegaram a sair do papel – centradas na importância do património cultural para o desenvolvimento social e humano, e na qualidade das intervenções no mesmo –. Estas são apenas algumas, que poderiam fazer uma diferença significativa:


i. Desde logo é importante resolver, de uma vez por todas, a questão dos recursos humanos e financeiros na área da cultura. A sub-orçamentação crónica mantém instituições e organismos do Estado, nas suas múltiplas representações e formas, incapazes de cumprir as responsabilidades que lhe são atribuídas no âmbito da conservação e restauro do património cultural. É impossível pensar na implementação de qualquer política no âmbito da preservação do património cultural, sem que este problema seja atendido.


ii. Relacionado com o ponto anterior, dotar os quadros de pessoal dos diferentes organismos do Estado com responsabilidades na salvaguarda do património cultural de conservadores-restauradores. Existe ainda um défice significativo neste âmbito, que compromete o cumprimento de funções e atribuições de várias instituições e organismos, colocando em risco acções de restauro, fiscalização e gestão do património cultural.


iii. Implementação do previsto na alínea e) do artigo 9º da Convenção de Faro, que estabelece a necessidade dos países signatários instituírem sistemas de qualificação e acreditação profissionais das pessoas, das empresas e das instituições, como forma de promover uma elevada qualidade nas intervenções (esta responsabilidade encontra-se já inscrita nas atribuições da Direcção-geral do Património Cultural).


iv. Aumentar os benefícios fiscais para pessoas individuais e colectivas, no âmbito do mecenato cultural, com revisão da portaria nº318/2015. Apesar desta ter traduzido um avanço nesse contexto, com a autonomização do regime dos benefícios fiscais aplicáveis ao mecenato cultural, o aumento das majorações para efeitos de IRS e IRC poderia funcionar como um incentivo para o investimento privado na conservação e restauro do património cultural.


v. No âmbito da contratação, e dado que o património cultural se assume como um bem com um valor cultural de âmbito nacional, público ou municipal, ou como testemunho civilizacional (património da humanidade), reflectir esta excepcionalidade no Código de Contratação Pública. Neste contexto, e mediante a definição de critérios objectivos (dimensão das intervenções, tipologias de património, nível de classificação), determinar a obrigatoriedade de concursos limitados por prévia qualificação em procedimentos que impliquem a conservação e/ou restauro de património cultural.


vi. Para todas as situações não abrangidas pelo ponto anterior, autonomizar as intervenções de conservação e restauro determinando procedimentos exclusivos para o efeito. Nesse âmbito, e sempre que a conservação e restauro surja inserida em empreitadas com várias especialidades, determinar a obrigatoriedade de aplicação do artigo 46º-A do Código de Contratação Pública (adjudicação por lotes), e limitar o valor associado ao critério preço a um limite máximo de 40%.


vii. Avaliação, no quadro das directivas comunitárias em vigor e da legislação nacional, da possibilidade de se aplicar uma taxa reduzida de IVA a todas as actividades no âmbito da conservação e restauro, para além das situações já previstas na lei (reabilitação urbana) – esta medida para além de se assumir como um incentivo à salvaguarda do património cultural, teria um impacto no aumento da procura dos serviços de conservação e restauro.


Se as crises são oportunidades, como comummente se costuma dizer, e se a que vivemos impõe, como muitos defendem, a alteração dos modelos e paradigmas que caracterizaram o mundo nas últimas décadas, o património cultural não deve ser excepção nesse processo de mudança. O Estado português continua bastante aquém de garantir a preservação do património cultural, e se nada for feito nesse âmbito que responda aos problemas crónicos do sector, quando vier a próxima crise teremos garantidamente as instituições ligadas ao mesmo para lá do ponto de ruptura, menos profissionais no activo, menos empresas especializadas e muito do nosso património numa situação de não retorno, no que à sua conservação diz respeito.


1 comentário


Bruno Resende
Bruno Resende
29 de jul. de 2021

O facto de a Cultura ter sido praticamente assimilada pelo Estado, sabendo-se a padronização, globalização e aniquilação artística, faz com que as injeções de capital fantasma agenciem o Estado. Se de arte e cultura o conhecimento é pouco, no fenómeno patrimonial a definição de vivência histórica seja ausente. Ao ver Teatro de Rua com um palco e cadeiras tudo se esclarece. Dezenas de anos com múltiplos eventos por fim de semana a fazerem cidades apinhar-se aos milhares desaparecerem das agendas sem aviso, antecipava uma destruição de vivência, de multiculturalidade, de manipulação da estratégia de cultura do património, vinculada a eventos de caracteríaticas únicas, a uma globalização onde os agentes culturais que estabeleciam as pontes entre os conhecinentos de património em…

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