Quando esta crónica for publicada está para começar, ou já decorre mesmo, mais uma Conferência Mundial do ICOM, a 36ª em toda a história desta ONG, a única reconhecida pela UNESCO como representativa do pensamento e das aspirações dos museus e dos profissionais dos museus em todo o mundo. Subordinada ao tema escolhido pelo Conselho Consultivo para o Dia Internacional dos Museus deste ano, “O Poder dos Museus”, terá lugar no Centro de Congressos de Praga, República Checa, e constará, como habitualmente, de uma semana plena de acontecimentos, os quais obrigam os milhares de participantes esperados a intenso programa de sucessivas deslocações no espaço principal (aqui com painéis temáticos e palestras principais) e fora dele, ou seja, nos museus que também acolhem colóquios anuais dos Comités Internacionais, nas cerimónias protocolares e em sessões nocturnas, nas recepções oferecidas pelos Comités Nacionais de diversos países e nas numerosas excursões na cidade e no país, que se iniciam antes e terminam depois dos trabalhos.
Como sempre, a Conferência Mundial, que não constitui órgão estatutário e é aberta a todos os que queiram participar, inclui várias reuniões dos organismos que representam a organização e têm poder deliberativo. Entre todos, cumpre salientar a Assembleia Geral (AG), composta por representantes dos Comités Nacionais do ICOM (mais de 120 na actualidade, cada um com 5 votos), dos Comités Internacionais (mais de 30 na actualidade, cada um com 5 votos também), das Alianças Regionais (8 na actualidade, cada uma com 3 votos) e das Organizações Afiliadas (mais de 20 na actualidade, cada uma com 2 votos). É à Assembleia Geral que compete aprovar os relatórios passados e a perspectiva de actividades futuras do ICOM. É também a ela que cabe decidir sobre documentos de fundo (como seja o Plano Estratégico trienal), aprovar Resoluções ou Declarações e, claro, adoptar alterações aos Estatutos e Normas Internas. Para este último efeito, deverá mesmo convocar-se Assembleia Geral Extraordinária (AGE).
As referências acabadas de fazer permitem melhor enquadrar o que se segue. Sem prejuízo de numerosas outras decisões que a AG será chamada a tomar em Praga, uma das mais relevantes será a eleição da nova liderança do ICOM (presidente, vice-presidentes, tesoureiro e membros do Conselho Executivo). Outra será a discussão e provavelmente a adopção de uma nova definição de museu, a qual, por ter acolhimento estatutário, requer a convocatória de uma EGA.
Quanto à eleição para a nova liderança, ocorre algo um tanto singular e não necessariamente positivo: existe somente uma candidata a presidente, Emma Nardi, com currículo anterior no ICOM ligado ao Comité Internacional para a Educação e Acção Cultural (CECA), ao Conselho Executivo e à função de tesoureira. Já para vice-presidentes (dois) existem quatro candidatos: Inkyung Chang, da República da Coreia, Vinod Daniel, da Austrália, María de Lourdes Monges y Santos, do México, e Terry Simioti Nyambe, da Zâmbia. Para o lugar (único) de tesoureiro também se apresentam dois candidatos: Luc Eekhout, dos Países Baixos, e Carina Jaatinen, da Finlândia. Finalmente, para o Conselho Executivo (com 14 membros), o principal órgão de gestão estratégica do ICOM (o presidente e vice-presidentes, que o integram, têm funções principalmente representativas) existem 21 candidatos. Depois de equívoco que levou a ter sido considerado como candidato a presidente do ICOM (e aliás muito saudado, o que bastante me sensibilizou), cabe-me a honra de ser candidato a membro deste Conselho Executivo, por nomeação do ICOM Europa. Deixarei, pois, as funções de presidente do ICOM Europa, por ter atingido o limite estatutário imperativo de dois mandatos consecutivos. As listas de candidatos acima referidos, e bem assim, os seus breves currículos e intenções que se propõem cumprir, sendo eleitos, podem ser obtidas nas brochuras impressas e digitais que o ICOM produziu. Veja-se por exemplo aqui: https://icom-europe.mini.icom.museum/icom-election-for-the-executive-board-and-the-advisory-council/?fbclid=IwAR3NnTkLceBei1SxY9s8Qe2n6l0fB7W_3UlL8vN6ycxXrTjIRYZzie-zJO8
Outro grande tema a que a Conferência do ICOM em Praga será chamada a dar resposta é a discussão sobre a adopção de uma nova definição de museu. Trata-se de assunto pendente desde pelo menos a anterior Conferência Mundial, em Quioto, no Japão, Agosto de 2019. Pendente e altamente polémico, como bem sabem todos os que nessa ocasião e depois têm vindo a acompanhar este assunto. Em Quioto, a definição ali apresentada acabou por não ser votada, tendo mais de 70% dos membros da Assembleia Geral Extraordinária decidido adiar a tomada de qualquer posição para a Conferência seguinte, ou seja, esta de Praga. A proposta de adiamento, que subscrevi e defendi em representação de algumas dezenas de comités nacionais europeus e não-europeus, e também de alguns comités internacionais, visou dar tempo para aproximar posições e evitar possíveis rupturas no seio do ICOM. Estou convencido que, se fosse mesmo a votos, seria reprovada por mais dos tais 70% do adiamento, já que alguns comités mais exaltados e radicais queriam resolver ali mesmo o assunto, rejeitando pura e simplesmente o que nos era proposto (ver essa proposta aqui: https://icom.museum/en/news/icom-announces-the-alternative-museum-definition-that-will-be-subject-to-a-vote/).
Os comentadores mais apressados (e superficiais) disseram na altura que o ICOM se tinha dividido entre “progressistas” e “reaccionários”, os primeiros defensores da proposta de nova definição de museu em cima da mesa e os segundos seus oponentes. Nada de mais enganador: não me tenho por “reaccionário” e recusaria enfaticamente, se fosse caso disso, a proposta da altura. A verdadeira oposição ali foi, a meu ver, a que opôs os profissionais que trabalham em museus e sabem da importância instrumental (sociológica e legal, mais do que especulativa ou conceptual) da definição de museu pelo ICOM, a um aguerrido grupo, aguerrido mas pequeno afinal (viu-se pela votação havida), de “activistas” de ”novas agendas identitárias”, a grande maioria sem realmente trabalharem em museus. O ICOM, importa esclarecer, embora constituído em grande maioria por profissionais que efectivamente trabalham nos museus, de manhã à noite, admite também, e muito bem, quem os estuda a partir de fora, nomeadamente académicos, e até quem para eles trabalhe, na condição neste caso que faça prova de que pelo menos metade do rendimento anual provém desses trabalhos.
Desde Quioto, em 2019, fez-se um caminho notável quanto a esta questão que ameaçava ser desastrosa para a coesão geral do ICOM. Por decisão do Conselho Executivo extinguiu-se o anterior comité que preparou a proposta de Quioto e criou-se outro, ICOM DEFINE, um comité presidido colegialmente por dois colegas latino-americanos, Bruno Brulon Soares, presidente do ICOFOM (Comité Internacional para a Museologia), e Lauran Bonilla-Merchav (da direcção do ICOM LAC), com membros intencionalmente representativos dos verdadeiros “donos do ICOM” (Comités Nacionais e Internacionais), o qual traçou e executou uma metodologia de auscultação extensiva de toda a Organização, conducente primeiro à identificação de conceitos-chave que se desejava manter ou introduzir de novo e depois à própria redação de várias possibilidades de definição, que, por decantação progressiva, vieram a ser votadas, dando origem à proposta que finalmente será apresentada em Praga.
Este método garante à partida a quase certeza da aprovação da nova definição de museu. Não tem ela praticamente nada a ver com a proposta de Quioto e tem bastante a ver com a definição actual, que remonta a 2007, mas tem origens mais profundas na importante revisão feita em 1974, no seguimento da chamada Mesa-Redonda da Santiago do Chile.
Importa cotejar ambas estas definições, a actual e a provável futura (faço-o na versão inglesa porque as versões em línguas nacionais terão ainda de ser estabelecidas):
Como se verifica a nova proposta é um pouco mais extensa, porém dentro de limites perfeitamente toleráveis e facilmente adoptáveis por qualquer legislação nacional ou internacional. Existe muito em comum entre ambas: os museus são apresentados como instituições, sem fins lucrativos e de carácter permanente, abertas ao público e colocadas ao serviço da sociedade. Não posso aqui referir as exactas implicações de qualquer uma destas características, que são vastas e importantíssimas. Também é fundamentalmente idêntica a enunciação das chamadas “funções museais”, mas com a subtileza de na nova definição, tal como na Lei-Quadro portuguesa, se indicar em primeiro lugar a função de “investigação”, algo que sempre defendi e por que me bati quando integrei o grupo de trabalho que a preparou.
As diferenças, as inovações, são igualmente muito relevantes. Elas falam-nos de acessibilidade, inclusividade, diversidade e sustentabilidade. Acrescentam as dimensões éticas, profissionais e comunitárias participativas, reforçadas ainda pelo uso do termo “partilha” entre aquilo que os museus têm para oferecer.
Mais uma vez não cabe nesta crónica desenvolver o quanto estas inovações se afiguram relevantes para a permanente adequação dos museus ao sentir e às exigências das sociedades actuais. Mas nem sequer seria necessário fazê-lo aqui, porque o iremos poder ouvir em Portugal, somente uns dias depois de Praga, entre 2 e 4 de Setembro, e de viva voz pelo presidente do ICOFOM e co-presidente do ICOM DEFINE, o colega brasileiro Bruno Brulon Soares. Este, no regresso ao seu país fará aqui escala a convite da Câmara Municipal do Fundão e do Centro de Estudos Território, Mobilidade e Património, a cujo Conselho Directivo me foi dada a honra de presidir, e foi criado sob o impulso da doação ao Fundão de todo acervo documental e bibliográfico de Hugues Varinne.
No Fundão vamos, pois, ouvir falar da nova definição de museu pelo ICOM e cruzá-la com esse território muito amplo e difuso que provocatoriamente chamámos de “museus-não-museus”. E fazemo-lo ademais para também assim celebrar o cinquentenário da Mesa de Santiago. Verdadeiramente a não perder.
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